Este post é um resumo do livro.
A obra organizada por Krippner expõe o mosaico e a multifacetada natureza dos sonhos. Aborda desde tendências atuais, como seu uso para crescimento pessoal e espiritual, o trabalho popular com sonhos e a ideia de uma mitologia pessoal; as abordagens terapêuticas, como a psicanalítica, junguiana, existencial e corporal; a criatividade e educação, envolvendo solução de problemas pessoais e profissionais, a literatura e as artes e o ensino do trabalho com sonhos; gênero e sexo, abordando as características dos sonhos entre homens e mulheres, na gravidez, com relação ao corpo feminino e a realização do sexo nos sonhos; os sonhos em épocas e lugares diversos, envolvendo perspectivas históricas e as abordagens nativas e xamânica e; as fronteiras, a neurociência, sonhos traumáticos e a antecipação de doenças, pesadelos, meditação, lucidez, compartilhamento de sonhos e mediunidade e sonhos anômalos. Vejam-se que as facetas são inúmeras e a obra é feliz em apresentar vários pontos de vista.
Inicie-se a exploração por algumas de suas características: 1) o sonho é, em geral, relevante para a vida atual; 2) por meio do sonho somos capazes de reunir mais informações sobre uma questão do que poderíamos apenas no modo acordado; 3) o sonho é sincero sobre o estado subjetivo; 4) o sonho é a recordação do que se sonhou: ele está sujeito à influência da recordação e da linguagem (o visual total é transformado em linguagem narrativa lembrada); 5) utiliza-se de metáforas visuais; 6) partilhar sonhos torna mais manifesto todo o seu potencial curativo.
No entanto, para além de suas características, a principal observação é de que o sonho já não é mais território exclusivo de xamãs, sacerdotes e psicanalistas. Pertence, antes de mais nada, ao próprio sonhador.
1. Tendências
Um paciente ou sonhador expressa mudanças significativas em sua vida por meio dos mitos de seus sonhos. Em psicoterapia, de acordo com Jung, estes mitos se entrelaçam com a vida do próprio paciente numa trama que se assemelha à “Jornada do Herói”. E isto, segundo algumas tradições, pode beneficiar não somente o sonhador, mas toda a comunidade. Este benefício pode ser de natureza espiritual, pois o mesmo é capaz de interferir na maneira de ser e agir à luz de valores supremos e mesmo interferir nestes. Esta interferência é mediada pelo processo de consciência, definida como “percepção mais ação apropriada”. O sonho traz introvisões perceptivas a serem incorporadas à vida, estabelecendo contato mais profundo com o eu para trazer à tona potenciais a serem integrados na vida em vigília. Desta forma, o sonho é metafórico, lida com mitos, é um evento espiritual, pode proporcionar cura e totalidade, liberta energia, estabelece uma conexão com um eu mais profundo, desafia e questiona. Nisso tudo, requer trabalho da consciência para elevá-la por meio de percepção e ação apropriada.
Esta abordagem dos sonhos, em geral, requer uma visão mais holística do que as tradicionais visando equilibrar ênfases à objetividade e à razão. Isto abre espaço para o trabalho popular com os sonhos e para a noção de que o estudo dos sonhos esteja enraizado e focalize algum aspecto da verdade múltipla e total do fenômeno dos sonhos. Ambos os movimentos são capazes de auxiliar no entendimento científico sobre a fenomenologia da consciência. Existe uma “inteligência social” nos sonhos.
O sonho é um dos processos principais que mantém uma mitologia em evolução. Um mito é um complexo de imagens, emoções e conceitos de um tema que nos ajudam a: compreender significativamente o mundo, informar um caminho já antes trilhado pela humanidade, desenvolver relações seguras e satisfatórias em comunidade e compreender nosso papel, missão ou sentido de vida. Uma mitologia pessoal bem desenvolvida é capaz de ser dispositivo orientador do sujeito em um mundo em tumulto. Os mitos são sintéticos e com isso imagina-se que os mecanismos da consciência associados ao sonho são sintetizantes, inclusive num nível neurofisiológico, entre os eixos verticais (cérebros históricos) e horizontais (hemisférios). Novas experiências são sintetizadas e interpretadas em estruturas míticas antigas e emergentes.
De acordo com alguns autores, o pensamento mítico move-se e processa-se por resolução de contradições, sendo dialético por natureza. “A tese é um velho mito, a antítese é um contramito, e a síntese é uma nova estrutura mítica que integra idealmente as qualidades mais vantajosas de cada um numa ordem mais elevada” (p. 34). Por este raciocínio, a vida dos sonhos deve ser capaz de assimilar novas experiências em velhas estruturas míticas. Do contrário, isto influenciará o equilíbrio da consciência. É como se “a função psicológica mais universal dos sonhos [fosse] incorporar ‘resíduos do dia’ às estruturas míticas existentes” (p. 37). Um sonhador consciente é capaz de dar passos concretos para tecer uma mitologia renovada diariamente.
2. Terapia e cura
Alguns fatos dão mais apoia às teorias de Adler de haver um continuum, uma totalidade entre a vida dos sonhos e a do estado de vigília, ao invés das de Freud, de que o sonho é a satisfação de um desejo reprimido. Apesar disso, o sonho tem sido subutilizado como instrumento de psicoterapia, com seu uso mais proliferado na terapia existencial, Gestalt e junguiana. Isto envolve também o fato de que tendências terapêuticas em emergência não sejam favoráveis ao sonho, enfatizando aspectos mentais e comportamentais.
Para os que o utilizam, são fontes de informações coletivas, divinas ou “alienígenas”, de solução de problemas, de facilitação para mudança de personalidade, de projeções e de informações acerca da personalidade.
No âmbito da psicanálise, os sonhos são encarados como contendo disfarces, pois a consciência evita a lembrança de traumas ou fantasias insuportáveis pessoal ou socialmente, pois isto perturbaria o sono e a integridade. Neste sentido, a interpretação do sonho deveria ser uma tarefa social, em que outra pessoa tenta imaginar o que a outra não vê, disfarçado no sonho, num processo de compartilhar mutuamente o aprendizado.
No âmbito junguiano o sonho é como um mecanismo compensador da consciência, num sistema total, aparecendo quando defesas estão relaxadas e abrindo portas para expressão de aspectos inconscientes. O processo analítico tradicional consiste em quebrar opostos polares (consciente-inconsciente, sujeito-objeto, dentro-fora) como medida de simplificação, tentado “pôr de lado” objetos que não são momentaneamente significativos.
Porém, âmbitos mais holísticos consideram este movimento fragmentador e excludente de relaçõessignificativas. Por este motivo, às vezes o processo de interpretação do sonho tem sido abordado “[deixando] que o sonho tome conta de [si próprio] (ou dos […] analisandos, se o sonho for deles) [para começar] a entrar em outro estado de percepção, em que o sonho transmite sua própria mensagem” (p. 66). Feito assim, torna-se comum identificar o sonho como algo que transcende a aparente dicotomia entre consciente e inconsciente. Como decorrência, ao invés de denominar inconsciente como um objeto, alguns autores referem-se a ele como “processo inconsciente”, “um modo holístico de organizar a experiência, […] que transcende o trabalho normal da atenção focal, apreendendo múltiplas conexões como um todo, sem diferenciações seriais” (p. 68). Logo, como relacionado ao processo inconsciente, o processo sonho é também holístico, de maneira que a interpretação analítica não devesse ser a única forma de apreensão do sonho. “O sonho é maior que aquilo que o esforço de interpretação nos permite perceber” (p. 69).
Isto parece ser prerrogativa também da abordagem existencialista, que aplica métodos fenomenológicos conforme a experiência se manifesta direta e concretamente. No caso dos sonhos, a preocupação é apenas com o que eles mostram acerca do seu conteúdo significativo. Depende de uma capacidade de prestar atenção ao que está diante dos olhos enquanto se sonha e de apreender contextos relevantes ao que o sonho se refere na vida em vigília. A abordagem é uma espécie de luz combinada do dormir e do estar desperto que permite penetrar áreas escurecidas da vida. Sendo realidades existenciais em si, tanto o sonhar como a vigília são oportunidades de uma existência humana mais rica e completa.
Já nas abordagens orientadas para o corpo, os sonhos são também padrões míticos codificados em experiências corpóreas. Os métodos permitem integrar sonhos e corpo num todo coerente e significativo.
3. Criatividade
Este ponto se sustenta por uma das ideias de Adler sobre o sonho: a de que ele tem o propósito de reforçar o poder emocional dos sonhadores, motivando-os a usar este poder para alcançar metas criativas e resolver problemas. Mas os sonhos não resolvem problemas para o sonhador. Eles abrem os olhos a informações que foram deixadas de apreciar e por meio destas “novas” informações se tem a ajuda para solução e para a criação.
Os relatos de sonhos utilizados na literatura e nas artes é farto. Mas o detalhe a ressaltar é a percepção artística de que há um continuum entre sonhos e vida acordado que faz diminuir a necessidade de distinguir sonho de vigília, introduzindo uma visão mais holística à mente humana. Neste continuumo artista viaja levando e trazendo imagens entre os mundos.
4. Gênero e sexo
Sonhos refletem processos interiores e culturais. Uma observação acurada dos mesmos sob o prisma da revolução sexual confirma esta relação. Ela modificou o conteúdo dos sonhos. Além disso, reconhece-se que há diferenças entre os sonhos masculinos e femininos, mas não é possível precisar se são oriundas de aspectos “naturais” ou socioculturais. Há uma hipótese favorecendo a força dos aspectos socioculturais para esta diferença, na medida em que ela é menos evidente hoje que no passado.
Um fenômeno tipicamente estudado é a clara diferença de sonhos entre mulheres grávidas e não-grávidas. Mulheres grávidas recordam mais frequentemente seus sonhos. Mulheres grávidas costumam sonhar com temas comuns ao período: água, animais, arquitetura e acontecimentos passados, além de sentimentos frequentes, como mais ansiedade e medo do que outros grupos. Talvez porque o parto tenha se tornado no mundo ocidental moderno uma experiência de mais ansiedade e dor. Mulheres estão experimentando atualmente mais angústia do que há poucas gerações. Por outro lado, há indicativos que eventuais sonhos angustiantes ou aterradores possam ser benéficos, pois preparam emocionalmente a mulher para situações. Além disso, mulheres com atitudes positivas em pesadelos têm trabalho de parto significativamente mais curto do que as que faziam papel de vítima. Isto indica que estudos dos sonhos das mulheres grávidas pode contribuir para um parto mais fácil.
Os estudos que vinculam sonhos às transformações do corpo feminino indicam uma dupla influência: as mudanças corporais da idade interferem no conteúdo dos sonhos, ao passo que os sonhos influenciam a psique e as atitudes das mulheres em relação ao seu corpo. Isto ocorre especialmente na adolescência, logo após relações sexuais, durante a gravidez, na menopausa e na idade avançada. Por exemplo, na menopausa o número de sonhos diminui e seu conteúdo está mais predisposto à forma de fogo ou calor. Além disso, as formas que aparecem nos sonhos retratam a sua relação com o próprio corpo. Assim, um terapeuta atento relaciona estas duas informações para buscar dissonâncias.
Também os sonhos são terapêuticos para transgressores e viciados em sexo. Estudos confirmam a poder curativo e de autovalidação.
5. Sonhos em outros tempos e lugares
As perspectivas históricas dão conta de que os sonhos foram usados, progressivamente, de abordagens centralizadas na figura da autoridade até mais democráticas de interpretação colaborativa. Parece, no entanto, que três escritores se destacam na influência que tiveram sobre seu tempo e após: o naturalismo de Aristóteles, a sociofilosofia de Cícero e a psicanálise de Freud.
Vigorou e vigora em muitos lugares a crença de que os sonhos se originam fora do sonhador, numa ordem mais elevada, divina. Esta crença é acompanhada daquela que indica que o futuro está predestinado ou está nas mãos dos deuses e que os sonhos são um acesso às informações relativas a esta predestinação. Aristóteles rejeitou estas crenças. Ele acreditava que sonhos eram percepções baseadas nos sentidos.
Cícero, famoso orador romano, por sua vez acreditava que os sonhos eram aparições ilusórias, sem que fossem capazes de trazer habilidades ao sonhador, adivinhar futuros ou ser fonte de sabedoria. Outra atitude crítica, com viés diverso, partiu também da Igreja Católica. Uma tradução latina da Bíblia do Séc. V, preparada por São Jerônimo, traduziu erroneamente e de maneira sistemática uma palavra hebraica para incluir os sonhos na categoria de feitiçaria de modo a proibir, por mais de um milênio, o trabalho com os sonhos.
Ao chegar ao Séc. XIX, ocorre uma transição na tradição onírica entre as abordagens clássica e bíblica anteriores e as interpretativas e investigativas do Séc. XX. Neste contexto surge Freud, trazendo o sonho para o domínio científico e clínico interpretativo. Foi sistemático ao observar mais de 200 referências anteriores a 1900, ano do lançamento de seu livro “A Interpretação dos Sonhos”, e os relatos de pacientes e os seus próprios.
Paralelamente, sempre que subsistiram tribos nativas, os xamãs – homens e mulheres que utilizam estados alterados de consciência para ingressar no campo dos sonhos – utilizaram seus conhecimentos e poderes para ajudar e curar em suas tribos. Tais xamãs, em geral, recebem o chamado através de sonhos e aprendem muitos dos seus poderes e instrumentos de poder também nos sonhos. Em alguns casos, a cultura específica de certas tribos acredita que o poder xamânico é compartilhado nos sonhos de todos os integrantes da tribo.
É surpreendente, entretanto, o fato de que alguns povos, como os iroqueses, acreditarem que sonhos são de fato desejos não concretizados. Assim, quando alguém tem um sonho em que está realizando um feito, ele é diretamente transposto para o mundo acordado, de modo que o feito, por exemplo, uma festa, seja realizado efetivamente. Até mesmo danos em sonhos são tratados como se tivessem ocorrido na vigília, como uma picada de cobra nos sonhos que é tratado como se a mordida tivesse ocorrido corporalmente.
Esta abordagem mostra como muitos nativos consideram o tempo dos sonhos tão ou mais “real” que o tempo da vigília. Aborígenes australianos creem que o tempo dos sonhos é um princípio histórico organizador do tempo e do espaço da vigília, criado por ancestrais míticos no princípio das coisas, e que a ele se pode ter acesso nos sonhos.
Sobre este “tempo eterno”, parece que as sociedades têm tirados suas ideias sobre os mortos e a alma destas noções culturais extraídas dos sonhos.
6. Fronteiras
As grandes contribuições modernas para o estudo dos sonhos são: Freud pela compreensão de que sonhos são expressões significativas da mente inconsciente; Jung que identificou sua dimensão curativa; Boss por sua posição existencial; Aserinsky e Kleitman pela associação com o sono REM; Foulkes pela sua associação cognitiva; LaBerge pelos sonhos lúcidos e a criatividade. Nesta acepção agora ampliada, faz sentido uma readequação da expressão de Freud, de modo que podemos entender sonhos como “a estrada régia para a condição humana”. Como consequência, há um crescente interesse de cientista e leigos, inclusive para a investigação de anomalias, fenômenos parapsicológicos e suas associações com os sonhos.
Um desses caminhos está sendo explorado pela neurociência. Ela acredita que o peso Freudiano de um inconsciente reprimido que salta nos sonhos é excessivo. Os princípios operativos da base da neurociência são outros, especialmente as noções de plasticidade do cérebro, autorregulação e criatividade, que levam o entendimento dos sonhos para outras esferas. De uma maneira simplificada, sonhos são representações simbólicas de segunda ordem que os centros superiores do cérebro confeccionam para gerar sentido sintético às descargas elétricas ocorridas internamente, a estimulação cortical dos centros inferiores. Em verdade, a neurociência está mais preocupada com o processo mental universal do sonhar e sua interpretação, do que as experiências mentais individuais e sua interpretação.
O estudo dos sonhos traumáticos e sua relação com problemas de saúde adverte, no entanto, que é preciso ir além, pois aquela relação só é distinguível na compreensão do conteúdo significativo para uma vida humana em especial. E esta distinção é importante, na medida que sonhos traumáticos podem ser indicadores ou advertências de grave doença encoberta, além de angústias e depressões severas.
Já no que tange aos estudos dos pesadelos, a parcela de importância do significado individual também é significativa. Eles são capazes até mesmo de grandes viradas de vida. Os exemplos são do próprio Freud e de Jung que, a partir pesadelos, tiveram insightspara toda uma teoria psicológica surpreendentemente nova, cada um à sua maneira. Este tipo de estudo também informa que homens e mulheres estão igualmente sujeitos a pesadelos, mas homens relutam mais em falar sobre eles. Pesadelos quase sempre envolvem sentimentos de desamparo, frequentemente datados da infância. Deste modo, a sua cessação ocorre em adultos quando o indivíduo se sente mais confiante, maduro e menos próximo dos sentimentos de desamparo da infância. É mais comum em indivíduos criativos, sensíveis e “vulneráveis”, no sentido de ter limites mais tênues em vários sentidos. Tratamentos eficazes envolvem reduzir a incontrolabilidade do pesadelo, seu sentido percebido de realidade, a linha histórica produtora de angústia ou a sua importância. Lucidez nos sonhos também demonstra eficácia.
O tema da lucidez também figura entre as fronteiras do trabalho com sonhos. Já se identificou que as mulheres são mais propensas, bem como os meditadores. Outro tema fronteiriço é o estudo do compartilhamento dos sonhos, por ser um fenômeno mais difícil de obter. Num sonho compartilhado, um grupo de pessoas concorda em encontrar-se num mesmo sonho, ao mesmo tempo, no mesmo espaço de sonho e recordar-se dos pormenores. A obtenção desta meta pode variar e ainda assim ser uma experiência positiva de compartilhamento.
Por fim, os sonhos mediúnicos ou anômalos também figuram entre as fronteiras de trabalho. Implicam sonhos de características telepáticas, clarividentes ou precognitivas. Tem-se notado que o sono REM é mais que um estado passivo: pode ser concebido como um estado de percepção de sonho, pois são captados e incorporados vários estímulos do corpo e do ambiente externo não normalmente disponíveis na vigília.
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