“He” é uma obra de entendimento da psicologia masculina por meio da análise do mito de Parsifal. Datado do Séc. XII, trata da vida de Parsifal e de suas aventuras relacionadas à busca do Santo Graal. Este é um mito sobre a própria caminhada de vida do homem e uma receita sobre os tempos atuais.
O mito tem uma multiplicidade de aspectos. O primeiro é de que o castelo que guarda o Santo Graal é regido pelo Rei Pescador. O Rei Pescador é uma alegoria rica, mas que trata de um rei que encontra, em suas caminhadas, um acampamento abandonado com um peixe sendo assado. De acordo com uma lenda celta, é o salmão da sabedoria. Faminto, o rei toma o peixe em suas mãos para alimentar-se, mas queima seus dedos e os lambe para aliviar. Ele fica ferido, o que o deixa suficientemente machucado para sofrer e gemer durante grande parte de sua vida, mas não o suficiente para matá-lo. O sabor do peixe de seus dedos lambidos deixará para sempre uma marca de desejo e êxtase pelo sabor incomparável da sabedoria, o toque de algo transpessoal. Ferido e débil, o reino retrata seu rei, de modo que as terras ficam improdutivas e o povo sofre. O rei grita incessantemente por redenção.
De acordo com Johnson, “o homem que sofre, em nossos dias, é herdeiro direto deste evento psicológico” (p. 14). O Rei Pescador, ou o homem jovem, despreparado, é ferido pelo peixe da sabedoria. É sua primeira e fundamental ferida de individuação. O gosto do peixe, porém, ficará em sua boca pelo resto de sua vida. O garoto acidentalmente tropeça em algo que é muito grande para si. Ter deixado o peixe cair é sua vergonha fundamental. A dor triste, porém, necessária, é “dar-se conta de que o mundo não é feito só de alegria e felicidade, como pensava, e observar a desintegração de seu frescor infantil, de sua fé, de seu otimismo” (p. 16).
Este ponto marca a passagem do primeiro para o segundo de três estágios de evolução: da perfeição inconsciente da infância para a imperfeição consciente da vida adulta e, posteriormente, a perfeição consciente da velhice. Esta passagem é, nas palavras de Johnson, o deixar o Jardim do Éden para empreender a caminhada para a Jerusalém Celestial. Para o autor, o irônico é que ambos são o mesmo lugar, mas esta jornada precisa ser feita. No mito, o rei só tem alívio quando está pescando, ou seja, realizando seu trabalho interior.
Uma lenda informa que apenas um tolo com uma questão específica é capaz de salvar o rei e seu reinado. É uma parte inocente do homem que pode curar sua ferida. “Se alguém pretende curar-se deverá encontrar algo no seu interior que tenha a mesma idade e a mesma mentalidade de quando foi ferido” (p. 23). No caso do mito, é Parsifal, um Galês humilde. Isto indica que a redenção pode, muitas vezes, vir do lugar mais inesperado. O nome Parsifal, apesar disto, significa “aquele que mantém os opostos juntos” (p. 26), mas também “caminho através de tudo” e “cavaleiro de sorte”. Jung foi um dos que confiou na sua parte inocente revivendo suas experiências infantis.
Parsifal é criado pela mãe, em condições primitivas e solitário, pois sua mãe, chamada Dor no Coração, resolveu protegê-lo do destino do pai cavaleiro que morreu em campanha. Ironicamente, Parsifal encontra cinco cavaleiros com indumentária perfeita, e deseja esta vida. Sua mãe, inconsolada, cobre-o de bênçãos e libera-o para o destino que corre em suas veias. Aconselha-o a 1) tratar bem as donzelas (isto é, no mito, a anima ou seu lado feminino que está em contato com o self); 2) que fosse à igreja de Deus sempre que precisasse de alimento e; 3) que se abstivesse de fazer perguntas. Parsifal sai à busca dos cinco cavaleiros, o número cinco significando a totalidade. Na sua busca, incorre em trapalhadas que muitas vezes são interpretadas como ações de um sábio ou escolhido. Naturalmente, Parsifal pergunta a todos por onde passa “onde estão os cavaleiros?”, no que recebe variadas e complexas respostas.
Entre os que encontra, um chama a atenção: o cavaleiro vermelho, o qual Parsifal admira.Pergunta a ele o que fazer para torna-se também um vistoso cavaleiro. O cavaleiro vermelho, perplexo diante de ousada pergunta vinda de um ser ingênuo, resolve não fazer mal e aconselha-o a procurar a corte do Rei Arthur, que o sagraria cavaleiro. Na corte, caçoam dele, à exceção de Arthur, diante da insistência de Parsifal. Arthur informou que Parsifal teria que aprender muito, no que, naquele mesmo instante, surge uma donzela que não sorria há muitos anos. Uma profecia informava que diante do melhor cavaleiro do mundo, ela explodiria em risos. E foi o que ocorreu diante de Parsifal. A este fato seguiu-se a sagração de Parsifal como cavaleiro pelo Rei Arthur. “Até que o lado Parsifal da natureza do homem venha à tona, há nele uma parte feminina que jamais sorriu, que é incapaz de ser feliz e que ganha a alegria de viver quando Parsifal desabrocha” (p. 33).
Parsifal jura lealdade ao Rei Arthur e sua Távola Redonda (o centro consciente da personalidade), mas ousadamente cobiça as vestimentas e o lugar do cavaleiro vermelho. Ao encontrá-lo, desafiam-se, o cavaleiro vermelho suplanta Parsifal, que em revide atinge com uma adaga seu olho e mata-o. “No instante em que mata o Cavaleiro Vermelho, Parsifal transporta uma grande quantidade da energia de seu adversário – o instinto – para si próprio, como ego” (p. 35). Na adolescência de sua vida, Parsifal enfrenta e vence vários cavaleiros, e envia todos para servir Arthur. Nas suas andanças encontra o castelo de Gournamond, que se torna seu padrinho, uma necessidade masculina quando o menino perde contato de uma forma ou outra com o pai. Gournamond passa informações vitais para Parsifal torna-se homem. Um de seus conselhos é deixar as roupas rústicas tecidas pela mãe. É uma deslealdade que o menino sente para com a mãe, mas uma deslealdade necessária.
Parsifal poderá, como o fez, voltar à mãe, mas Johnson adverte que apenas em outro nível, quando estiver ligado a seu próprio lado feminino (anima) e/ou uma mulher de idade equivalente. Até mesmo porque a mãe de Parsifal morrera no exato momento de sua partida e somente em outro nível poderá reencontrá-la. Na sua busca pela mãe, encontra aquela que será a inspiração da sua vida, Branca Flor, sua anima. Gournamond, porém, o havia advertido para jamais seduzir ou deixar-se seduzir por tão formosa donzela, sua mulher interior. “É raro o homem que sabe bastante sobre seu componente interior feminino, sua anima, ou que consegue com ela manter um relacionamento satisfatório. No entanto, se ele pretende qualquer desenvolvimento interior, é essencial que descubra sua anima […]aprender como relacionar-se com ela, tê-la como a companheira interior que caminhará com ele e lhe trará calor, força e entusiasmo no decurso da vida” (p. 53).
Johnson acrescenta: “Tanto a genialidade quanto a criatividade de um homem são manifestações desse lado feminino, que lhe dá a capacidade de ‘dar à luz’ algo. É, porém, a sua masculinidade que lhe permite dar forma e estrutura ao que fez nascer de si, no mundo exterior” (p. 55). No entanto, seduzir ou deixar-se seduzir por ela faz desaparecer as chances de chegar ao Graal. São os ataques de “humores”, de depressão e inflação do ego. “O homem ainda é uma criança diante da mulher interior, e por isso fica indefeso quando atacado por ela na forma de um humor. […] É preciso ser forte para agir contra os humores, e isso pressupõe um ser que se está libertando da infantilidade, ou seja, de seu complexo materno” (p. 64).
Na continuidade de sua busca heroica, deixa o castelo de Branca Flor e viaja uma longa jornada. Desejando descansar, pergunta sobre um local para tal a vários viajantes, mas não há nenhum próximo. Encontra um pescador (o Rei Pescador) que o convida a descansar em seu castelo (do Graal): “– Desce pela estrada, há um caminho, vira à esquerda e cruza a ponte levadiça”. Lá, uma cerimônia é para ele reservada, incluindo uma procissão que carrega a lança que trespassou Cristo e que verte sangue, um prato de ouro da última ceia e o cálice sagrado, o próprio Santo Graal. Parsifal fica surpreso. Gournamond, seu padrinho, o havia ordenado que, ao encontrar o Graal, fizesse a seguinte pergunta: “A quem serve o Graal?”, mas isto o colocou em um dilema fatal diante da orientação de sua mãe: “não faça perguntas”. Parsifal optou pela segunda e todo aquele encanto desfez-se, pois no dia seguinte, apesar de toda a expectativa da corte, a falha de Parsifal tornou-a deserta. Parsifal monta seu cavalo e sai desolado e mudo do castelo. Nunca mais será o mesmo: encontrou algo perfeito, a felicidade plena, e foi incapaz de fazer o que deveria.
Parsifal passa o resto da vida procurando o castelo do Graal uma vez mais. “E só é preciso ‘descer a estrada, virar à esquerda e cruzar a ponte levadiça’. Mas a simplicidade do ‘endereço’ é tão grande que efetivamente o esconde da vista” (p. 72). É preciso ficar claro que não é um local exterior: é como um nível de consciência. O homem ocidental acredita que são necessárias cruzadas para atingi-lo. Mas está sempre ao alcance da mão, requerendo mais que se retirem os véus para chegar a ele, do que atos de criação. É aparentemente inexorável: temos que buscar para descobrir que não existe busca. Mas Johnson adverte: “Apesar de o Graal estar sempre […] à disposição […], é aos 16 e aos 45 anos, ou seja, nos períodos de transição, […] que ele é mais facilmente encontrado. Aquela procissão miraculosa acontece todas as noites no Castelo do Graal; mas é somente […] quando está preparado para tal […] que o homem pode ter acesso fácil […]” (p. 81).
Parsifal passa por anos estéreis e culpas pela falha. O herói continua a vencer “muitos cavaleiros, manda-os todos à corte de Arthur, salva muitas formosas donzelas, levanta cercos, protege pobres, mata dragões – todas as coisas boas que o homem deve fazer na metade da vida. Esse é o processo cultural para fazer com que uma civilização funcione” (p. 87). Mas também o que cria armaduras difíceis de serem despidas. E isto também terá que ser feito. Então, voltar ao castelo do Graal implica passar pelas dimensões eminentemente humanas da vida. “Jung também sentiu que o trabalho real do homem moderno seria o de promover a expansão da consciência representada pela evolução […] [de uma] devotada ao fazer, ao trabalho, à realização, ao progresso […] para aquela caracterizada pela paz, pela tranquilidade, pelo ser existencial” (p. 90). É “[…]uma formidável tarefa incorporar em nossa personalidade esses elementos vistos como escuros até um tempo atrás; a rejeição de um elemento tão sombrio é perigosa. Mas se alguém antagonizou o lobo por tanto tempo, não pode simplesmente abrir a porta e dizer-lhe: ‘Seja bem-vindo’” (p. 91). Há um processo a ser feito.
Por aqueles feitos, Parsifal é recebido na corte de Arthur com honrarias. Apesar disso, no ápice do sucesso, há uma Donzela Tenebrosa que informa que Parsifal é impostor, pois por trás de seu aparente sucesso há o fracasso essencial de fazer derramar as bênçãos do Graal. A corte do Rei Pescador continua a sangrar. A Donzela Tenebrosa visita os homens de meia idade, de sucesso e realizados, mas vazios de sentido. Conforme Johnson, é às duas horas da manhã que se cai na “noite escura da alma”. Sua advertência é de que se façam as pazes com seus elementos escuros, suas sombras, para paradoxalmente livrar-se das trevas. A partir daqui todas as tarefas são individuais e únicas. “Soluções coletivas ou em grupo cessam aqui […]. Quando alguém aceita a solidão de sua jornada não há comparação possível, pois está naquele mundo existencial onde as coisas simplesmente são. Neste reino não há nem felicidade nem infelicidade, na acepção comum, mas somente aquele estado de ser que é corretamente chamado Êxtase” (p. 97).
Neste processo todo, um eremita interior, inicialmente calado, vai sendo empoderado. A certa altura ele pode culpá-lo (seu ego) por todos os percalços, mas ele também “alivia” e aponta a responsabilidade do complexo materno interno por tudo o que ocorreu. O complexo materno interno, quando exacerbado, leva à cautela excessiva e a um complexo derrotista. Mas ainda assim, pode haver redenção se tivermos a coragem de perguntar: “A quem serve o Graal?” Johnson aponta vários nomes: ao Rei do Graal, a Deus, ao Self e vários outros nomes que designam o que é maior que nós. “Quando Parsifal aprende que ele não é o centro do Universo – nem do seu pequenino reino –, fica livre da alienação e, por fim, o Graal deixa de ser vedado a ele. Agora pode entrar e sair do castelo pelo resto de sua vida, quando quiser. Nunca mais será um estranho nele” (p. 104). É um mito sobre a tomada consciência para ter o poder, o que, se for invertido, causa a destruição. Parsifal, além disso, “só” precisa perguntar, sem ser necessária uma resposta. O homem procura pela felicidade para si, com o centro em seu ego. Enquanto a tiver desta maneira como meta, não a encontrará. Mas se recolocar o centro de gravidade da personalidade em algo maior, será decorrência.
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Muito Bom o Resumo!